09 fevereiro 2009

Cage - 4'33''

É necessário reflectir um pouco para entender esta composição.
A reacção mais imediata, claro, é rir e afirmar, cegamente, que estamos perante um... nada. Um vazio pretensioso, como o Vasco grunhe, assim como alguns jornalistas mais opacos quando referem o aniversário deste compositor, por exemplo, ou nos comentários surpreendentemente agressivos que vemos no link que o nosso curioso colega de blog referiu. Mas, uma vez mais, em vez de saltar para conclusões precipitadas, proponho apenas que paremos, e que reflictamos um pouco.

quatro minutos e trinta e três de ...silêncio, para os mais desprevenidos. Mas... façam o seguinte pergunta: o silêncio absoluto existe?

Esta história é muito famosa, mas para quem não sabe, aqui a exponho.
John Cage colocou essa mesma hipótese: o silêncio pode existir? Para a tentar testar, com a colaboração de uma Universidade de Harvard, fechou-se dentro de uma câmera anacóica (um espaço 100% à prova de som) e tentou... não ouvir.
Mas não conseguiu.
Dois sons o perturbaram, um grave e um agudo. Ao descrevê-los aos engenheiros e médicos que acompanhavam a experiência, estes concluíram que eram os sons do seu sistema circulatório e nervoso, respectivamente.

Fascinado com esta ideia da impossibilidade do silêncio, Cage preparou a composição 4'33'', em que há orquestra e público, mas não há certamente silêncio. A composição não é então vazia, mas sim preenchida pelos diversos sons do público, pelas suas reacções, pelo seu desconforto, o tossir de uma velha, o roer de unhas dum aristocrata, o dobrar de uma pauta. É uma composição aleatória, fruto do inesperado, dos ruídos do acaso.

Anos mais tarde, Christian Wolff deu um concerto de piano com uma janela aberta, por onde era audível o barulho da rua, do vento, dos carros. No final, um espectador perguntou-lhe: importa-se de tocar de novo, mas desta vez com a janela fechada? Wolff respondeu: com todo o prazer, mas dessa maneira não vai conseguir ouvir a composição.

Os comentários ao vídeo YouTube do link acima referido são um paradigma por si só dos limites que as pessoas colocam na sua percepção do mundo. E estão relacionados com as catalogações de música aqui tantas vezes discutido (pop, indie, experimental, blablabla). Como exemplo, o comentador que disse This is no music. Music has to come from instruments. O que dirá este senhor dos Sonic Youth (para dar um exemplo pop) bem conhecidos por usarem de vez em quando chaves de fendas como instrumentos? Não fazem eles música só porque as chaves de fendas não são consideradas tradicionalmente como instrumentos musicais? Ridículo, pois.

Impôr cercas à percepção do mundo é um erro e se o único contributo do John Cage para a música actual fosse a destruição das mesmas, seria já imenso. Mas, se na música pop este compositor pode não ter muito peso, certamente que a nível filosófico e artístico está presente de uma maneira indubitável, influenciando todas as gerações de compositores contemporâneos que se lhe seguiram.

O Vasco chama-lhe, com espuma nos cantos dos lábios e sangue a raiar nos olhos, de um provocador. E qual o mal em se ser um provocador? Não foi isso que Sócrates (o filósofo, não o estadista) foi? Qual o mal em estimular o pensamento das pessoas? Em provocar sensações, questões, dúvidas, confrontações?
Mal é dos que se não permitem estimular, descansando ininterruptamente no conforto amniótico emparedado da cultura pop.

Vou transcrever um comentário de alguém que ficou muito incomodado com a descoberta de John Cage:
Brainless dilettantes! This isn't music. It's disgusting how these minimalist movements try to redefine music and art, but ironically, manage to only recede it further into an archaic and undistinguished practice of cavemen and toddlers. Music and art are human pursuits, and should reflect the complexity of perception. This is nothing.
Segundo esta lógica evolucionista, Bach é inferior a Take That.
Enfim, só encontro uma razão para tanto fel: não se fazer o esforço de compreender a beleza da percepção dos sons banais e aleatórios. Nunca deram por vocês em casa no meio do silêncio de uma insónia fascinados com o ruído de uma fissura que se expande na parede ou duma tábua que range por debaixo das mandíbulas de um insecto ou do vapor de água que se liberta do pavimento lá fora? That is not nothing.

20 comentários:

Pedro Candeias disse...

Olá Raul,

Antes de mais, não percebo como chegaste à conclusão "Bach é inferior a Take That" a partir comentário que recuperaste. É verdade que os instrumentos evoluíram, surgiram outros, electrónicos, e que passaram a fazer parte da linguagem musical dita erudita - para o agrado de uns e desagrado de outros. Nesse ponto, compreendo o que queres fazer com "Bach é inferior a Take That".

Mas o tipo (ou tipa) que comentou parece referir-se mais à construção musical adoptada por Cage do que propriamente aos instrumentos - é mais uma crítica ao modo aleatório como ele compunha do que propriamente aos instrumentos utilizados para dar expressão às suas composições. O simples e rudimentar triângulo, também conhecido por "ferrinhos", não é propriamente conhecido pelas suas infinitas possibilidades sonoras (tal como as chaves de fendas dos Sonic Youth) mas já existe desde o período Romântico, a antetítese de Cage ou de outros seus contemporâneos.

Portanto, "Bach" não "é inferior a Take That". Isto até porque Bach, um génio, não foi tão influente no seu tempo como se julga (Telemann era a estrela) por ser visto como antiquado e conservador pelos seus pares na abordagem que fazia à música. Qualquer semelhança entre os percursos de Bach e Cage é pura ficção, mas nem por isso o primeiro (reaccionário)deixou de marcar a história de uma forma que o segundo (revolucionário) nunca conseguirá. E porquê? Pela música que compuseram.

E agora entramos no âmbito puramente subjectivo. Concordo com o Vasco e discordo de ti: desde quando é que o ruído de uma fissura pode ser interpretado como música? Se é disso que falamos neste "blog", o que me interessa o ranger da tábua por debaixo das mandíbulas de um insecto? Concedo que a imagem está bem conseguida, mas, se a música é a expressão máxima do Homem, por que raio devo ficar fascinado com uma barata?

Mais. O 4'33'' é tão interessante quanto a "Branca de Neve" do João César Monteiro: zero. Se a música é som e o cinema, antes de mais,imagem, porque iria assistir a um destes dois espectáculos? Até acho piada aos provocadores e sempre estive a favor da progressão artística, mas temo que há gente que chegou onde chegou apenas por irritar quem pagava bilhetes. Stravinski (Sagração da Primavera) quebrou convenções, foi apupado, sim, mas fez música, compôs; Schoenberg, idem. O resto são balelas de gente muito ocupada em tentar ser original apenas pela confrontação.

Provocar como Sócrates provocou, tudo bem, porque leva-te a pensar e reflectir. Mas a música não é filosofia.

Vasco disse...

"Avant Garde Means Shit In French" - John Lennon

John Cage e o César Monteiro, como o Pete sabiamente lembrou, só quiseram fazer uma coisa: Por em causa de forma panfletária a nossa concepção de arte.
No entanto, são obras de arte, porque foram realizadas com intencionalidade artística do seu criador, ou seja, são manifestações de ordem estética a partir de ideias e emoções.
Uma sanita, para a qual urinamos todos os dias, pode ser uma obra de arte a partir do momento que a colocamos numa exposição.O artista plástico Duchamps fez isso mesmo.
Mas vocês perguntam, qual o prazer de ver uma sanita com urina no CCB?
Para mim, nenhum.

Cisto disse...

Pete:
1)agradecia que deixassem de pôr palavras na minha boca que não foram proferidas. Nunca comparei a trajectória de Bach e Cage. Referi Bach como expoente máximo, na minha opinião, de música "bela" (conceito este que não vale a pena aqui discutir). Por outro lado, estou bastante esclarecido ao conservadorismo de Bach e a sua referência, por antítese, foi propositada. Referi sim a lógica evolucionista do comentador que dizia que Cage era um retrocesso na música, e eu apenas perguntei: então e Take That, sendo mais recente que Bach, representa o quê? Progresso? Basicamente quis dizer que essa lógica caveman/modern man é absurda na análise da "qualidade" da música. (E podes crer que muita da música étnica me interessa muito mais e tem muito maiores complexidades do que a música pop, como deverás concordar comigo)
2-Insistir no fenómeno Cage por si só é extremamente redutor. Afirmar que o 4'33' é vazio e pateta é olhar para essa composição (e do ponto de vista formal é indiscutível tratar-se de uma composição) fechada em si mesma, sem avaliar os aspectos filosóficos que suscitou.
3-Negar a extrema influência e importância de Cage é ignorar o que é a música contemporânea erudita e a arte contemporânea de modo geral. E esta não é apenas a minha opinião, basta pesquisarem um bocado, perceberão que se trata de um facto.
4-Pete, respeito a tua opinião, por respeitar as opiniões de todos, de maneira geral, quando fundamentadas, e em especial devido à tua formação. Mas o facto de estares interessado ou não no ranger de uma tábua é algo puramente pessoal, e considerares que lá por tu não estares interessado, o resto do mundo também não está, é redutor e quase arrogante (não soubesse eu que tu não o és).
5-música arte filosofia. Não são necessariamente as mesmas coisas mas tudo está interligado e não deve ser visto como compartimentos estanques, do meu ponto de vista. Filosofia é cultura é filosofia. Esta temática é muito complexa para ser aqui explorada, no entanto.
6-Se quiserem entender John Cage como uma banda rock e decidir se é bom ou mau pelo facto de gostarem de ouvir as suas obras ou não, tudo bem. Como tentei explicar (e por achar que o texto se preocupa até demais em explicar isso não vou repetir e sugerir apenas uma releitura) Cage não tem relevo pela qualidade e agradabilidade das suas composições per se, mas sim pelas portas que abriu: infinitas, e que ainda ninguém conseguiu fechar.

Cisto disse...

Vasco, ARTE = PRAZER, pra ti. Tudo bem. A maioria das pessoas pensa assim. Mas eu tenho prazer é quando agarro as coxas de uma mulher e aspiro o seu perfume e mergulho no seu pescoço e espremo um seu mamilo com os labios, não num museu, certamente.

Vasco disse...

Avaliando o teu gosto em tudo, prefiro acariciar o buraco do disco vinil...

Cisto disse...

Não sei bem o que queres dizer com isso, mas a tua orientação sexual não deveria ser para aqui chamada.

Vasco disse...

As pessoas equilibradas têm prazer em ouvir música, não me referia ao prazer sexual.
Cage foi apenas um fait diver musical com os Futuristas ou Dadaistas.
Acho que estás, ao que se chama na gíria, armar aos cagados.

Cisto disse...

desculpa, pensei que acariciar o buraco do disco fosse uma metáfora.
Chama-se o que quiseres. Mas, se quiseres, também, lê os meus argumentos em vez de insistires sempre na mesma tecla.

Vasco disse...

Eu qualifico Cage como um artista, no entanto, não retiro nenhumas emoções da sua obra.
O 4´33`` é o vazio, a chegada ao grau zero da criação, "o nada".
Tal qual como na latrina do duchamps, é pura provocação e contestação artística.
Só mais uma coisa, em jeito de ironia, o solo de piano do 433 é genial.

Vasco disse...

http://www.youtube.com/watch?v=NLOWy3ys8Ag - que portas isto abriu?
Gostava de saber... A porta da minha garagem abre bem mais do que isto.

Cisto disse...

Apenas alguém pouco acostumado à dança/coreografia e música erudita contemporânea é que pode arrotar este link e afirmar que não influenciou ninguém.
Uma vez mais, evacua dessa tua esfera punhetástica, e compreende que as tuas percepções sensoriais são irrelevantes para a história da música.

Vasco disse...

raul, o iluminado e nós os burros. Estás a ser Pretensioso e ordinário até expoente máximo..

Pedro Candeias disse...

E pur si muove. Que é como quem diz, recuperando Galileu, que este blog está a mexer-se!

Raul, antes de mais, quero dizer-te que a análise que fiz foi basicamente pessoal. Não queria desfazer os teus gostos dando a minha opinião - subjectiva, portanto. Provavelmente, fi-lo e terei exagerado com a história da bicharada (reli o que escrevi). Mas, simplesmente, não aprecio John Cage nem lhe reconheço a importância que lhe atribuis. Bem sei que há (alguns) factos que sustentam o que afirmas relativamente ao seu peso na história, mas não é só, e apenas, através dele que conseguimos compreender - sendo esta a palavra chave para muito do que aí se faz - a música e bailado contemporãneos. E se insistimos no fenómeno Cage, é porque tu o trouxeste a lume - e bem, para animar as hostes. E, sim, formalmente, a 4'33'' é uma composição; quanto ao conteúdo... terás que dar-me razão quando a classifico de "zero". E, também é lógico que não estou aqui a querer ensinar nada a ninguém, Raul, e sei que estás ao corrente da história da música. O que disse de Bach foi apenas um enquadramento, não uma lição. Não tenho essa pretensão. A informação está à mão de semear e basta colhê-la. Haja interesse!

Ah!, e continuo a achar que a relação Take That-Cage-Bach-e o tal opinador está mal construída.

Abraço

Vasco disse...

A importância de Cage é a mesma de Duschamps: um provocador que pôs em causa o nossa concepção de arte através de manifestos sonoros primitivos.
A música contemporânea merece ser lembrada nos manuais, no entanto, comparar a Bach, Mahler ou Beethoven, é, no mínimo, grotesco e de extremo mau gosto.

frederico disse...

o raul nunca afirmou que bach é inferior a take that, nem acho que a construção da frase esteja mal feita. apenas referiu que, segundo a teoria evolucionista, bach seria inferior a take that por ser mais antigo, o que é ridiculo.
Em relação a Cage, gosto da sua forma de agitar percepções e acho que todos os que fazem mexer com as sensibilidades merecem um destaque e não apenas nota de rodapé como Stockhausen, por ex. No entanto, música, no meu ponto de vista de sensibilidade é muito mais do que poder criar tumultos. Por isso consigo retirar de apenas músicas pop sentimentos que não retiras apenas ao cheirar um pescoço suave de uma gentil miuda. Ouvir um solo do David Gilmour dá-me sensações que nenhum Cage me dará, mas também, há pessoas que retiram qualquer de um pontapé nos tomates...

frederico disse...

qualquer coisa de um pontapé nos tomates

Alex disse...

Eu acho o silêncio um som maravilhoso. Tal como colocou o Caetano na letra da sua música "Pra ninguém"

Melhor do que isso só mesmo o silêncio
Melhor do que o silêncio só joão
(referindo-se a João Gilberto)

Provocar é bom. É assim que tudo avança. Questionando e provocando. E o Cage como provocador tem a sua quota de importância na evolução da arte. Acho que não é necessário comparações. Para mim, só pelo facto de ter gerado toda a discussão à volta do tema já mereceu a pena. Venham mais Cages e principalmente venham mais João César Monteiros (que falta faz...)

Pedro Candeias disse...

Continuo a achar que a frase está mal construída. O comentário que o Raul recuperou criticava Cage (século XX) mas não dizia que tudo o que era contemporâneo era mau. Rachmaninov (bom), Gershwin (mau), Stravinski (bom) - entre () estão as minhas considerações sobre as músicas dos compositores - também eram do século XX mas não acredito que o comentário do qual o Raul fez o "post" os abrangesse. O Raul tomou o todo pela parte e partiu para a generalização (isto quer dizer que Bach é inferior a Take That porque é mais antigo) a partir de uma coisa específica (a crítica aos minimalistas e aleatórios como Cage). E, por mim, dou o assunto por encerrado. O povo é que sabe, e os gostos não se discutem - comentam-se.

Vasco disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Vasco disse...

Uma coisa é provocar outra é ser niilista. Godard, Fellini, Lennon, Pollock, Wagner, Henry Miller, Dali, Picasso fizeram obras provocadoras mas com conteúdo. Em Cage não vejo conteúdo, apenas, sons primitivos e absurdos.
Cage é um provocador niilista, no meu entender, um fait daiver na história da música, que devemos conhecer, mas nunca divinizar.