07 março 2010

Palavras ao Ouvido#4 - Shakira - "Hips Don't Lie"



Afastou com precisão o dedo anelar do mindinho. Fez aquela pausa como se num segundo o seu cérebro alojasse um naufragado frágil. Tinha feito um bolo de chocolate na quinta-feira e lembrava-se de riscar o fundo da panela ao raspar o resto do creme. Tinha usado aquela mesma faca pois o resto da louça estava na máquina e não gostava de interromper as tarefas a meio. Não, não teria segundos pensamentos quanto ao que fazer. Num gesto fluído separou o anelar do resto do corpo: com isto uma chusma desordenada de sangue começou a brotar da ferida. O homem enorme tinha o grito preso nos olhos. Como o sangue não era asseado, não tinha maneiras, teve mesmo que interromper o seu pequeno projecto sociológico para ir buscar uns jornais velhos. Entre a maca, que era já mais uma esteira meio roída pelo Inverno, e a parede, havia muito pouco espaço. Ainda assim, ela conseguia rodopiar, como se dançasse pelo pequeno corredor que a levava do quarto à cozinha. Junto ao forno havia uma pilha de jornais velhos. Limpou de imediato o sangue da faca ao primeiro do topo. Agachada em frente ao forno apenas teve que pressionar o botão vermelho para acender a luz. No seu interior o frango ainda nem começava a estar corado pelo que tinha ainda algum tempo. Só faltava o molho que era muito fácil de fazer e pôr a mesa. De qualquer forma os convidados podiam ajudá-la a fazer isso caso se atrasasse um pouco. Tinha um set novo de pratos amarelos com flores em azul comprados no supermercado, mas que faziam as vezes de um serviço fino. Com pés leves passou aos saltinhos pela sala sempre atenta aos possíveis pinguinhos de sangue que pudessem cair e coagular no soalho de tacão. Não suportava que o sangue coagulasse, isso era o que podia diferenciar um bom dia de um mau dia. Reentrou no quarto e começou a limpar o sangue caído numa enorme poça junta à mão do enorme senhor. Só as contracções da tábua respiratória dele, chamada o peito, indicavam a dor como uma música secreta de músculos. Ele não era má pessoa, era apenas um analfabeto corporal. Pelo menos era o que ela pensava. Mesmo agora, já com apenas quatro dedos na mão esquerda, retorcia-se sem ritmo, como se não soubesse sofrer com estilo. Desfolhou o “Correio da Manhã” e com duas páginas limpou o sangue que começava a formar um carreiro. Junto à mesa onde estava o retrato da avó falecida há muito, o anelar decepado parecia um caracol. Pegou noutra página e leu distraidamente uma notícia sobre o começar da Primavera. Com ela enrolou o dedo e colocou-o na gaveta com carinho. Ele olhava-a com a expectativa de quem poderia ficar a qualquer momento com menos corpo. Ela pensava que ele dançava bem e que tudo o que acontecesse de agora em diante não iria pôr essa sua qualidade em risco. Mas ele tinha dito palavras que vinham de outro país, estrangeiras, e nelas estava acorrentada a vontade de dançar a dois. Não que não quisesse, não que o seu próprio corpo mentisse quanto à vaga ideia que se lhe havia formado naquela noite quanto a ser penetrada por aquele animal. Mas as palavras dele, sempre as palavras, tinham vindo a uma velocidade superior. Uma velocidade que se tivesse sido corporal tinha apenas desencadeado um abraço lento, daqueles com que se começa. Mas, “és muito bonita” tinha sido faca suficiente para aquele momento. E foi fatal. A sua saia branca com bolinhas pretas estava imaculada e deixava-o entrever o joelho. Ela tinha vontade de o ouvir falar agora. Irónico certamente que o deixasse falar naquele momento mas porque pensava que ele não pudesse já ser hipócrita. Sim, ela agora já não seria bonita, seria um ser medonho com um vestido belo. Uma deusa com uma faca brilhante a ponderar o que fazer com aqueles 100 kilos de carne negra. Tinha quase a certeza que ele choraria e pediria perdão, sem saber do quê. Por isso, ligou o rádio e foi com jazz que pegou novamente na faca. Garganta ou coração? Quinze segundos depois decidiu-se. Garganta. Porque o corpo não pecara, porque o coração só corria sem saber para onde. Sem mais, fez um corte limpo e ele esbracejou numa última vivacidade sem estilo. Animais a viver e a morrer: que desinteresse. Não se sentia culpada. Afinal tinha sido apenas um problema de comunicação. Como milhões de outros.

O gato amarelo lambia a faca que tinha entretanto caído ao chão e o dia avançava lentamente. Pensou se sairia naquela noite outra vez. Apetecia-lhe. Mas agora era tempo de se preparar para o almoço. Tinha um homem morto no quarto das visitas e embora não tivesse ouvido o alarme podia jurar que o frango estaria certamente já cozinhado.

5 comentários:

Anónimo disse...

nunca mais entro aqui,
depois de bon jovi
shakira foi a gota de água

passem bem

Carlos Natálio disse...

aahhahah

ico costa disse...

anónimos há muitos!

Carlos Natálio disse...

Devo dizer que há algo análogo à homofobia, desta feita aplicada à música, no que toca à incapacidade de suportar ritmos shakirianos de forma perfeitamente descontraída e indiferente. Assuntos mal resolvidos, portanto. :)

ico costa disse...

muito bom, outra vez.
tenho saudades deste tipo.